Em município mineiro, PT e PSDB fracassam contra a miséria

Ricardo Senra

Enviado especial da BBC Brasil a São João das Missões (MG)

  • Ricardo Senra/BBC Brasil

    Dona Joana, moradora de São João das Missões, na caatinga do norte de Minas Gerais, quase fronteira com Bahia

    Dona Joana, moradora de São João das Missões, na caatinga do norte de Minas Gerais, quase fronteira com Bahia

Dona Joana não sabe quantos anos tem. "Acho que uns sessenta. Talvez. Idade certa eu só lembro a dos filhos."

Mas ela sabe bem o que é a fome. "Quando menina, eu passava 'era' dias sem comer nada. Dias sem comida em casa."

Morena, bem magra, com os olhos opacos pela catarata mirando a parede de pau a pique, dona Joana conta que a fome ficou no passado. A mudança é recente: "Foi quando comecei a receber a aposentadoria".

Ela recebeu a reportagem da BBC Brasil na casa de madeira e barro que construiu sozinha para cuidar de quatro crianças - foi abandonada pelo marido quando a filha mais velha tinha um mês - em São João das Missões, na caatinga do norte de Minas Gerais, quase fronteira com Bahia.

De acordo com a ONU, sua cidade natal ocupa o 5402º lugar no ranking de desenvolvimento humano (IDH) brasileiro - o pior resultado em um município fora dos Estados do Norte e Nordeste do país (a lista inclui 5.565 cidades).

Entre 2000 e 2010 - período que coincide com os governos do PSDB na esfera estadual e do PT em nível federal -, o IDH de Missões foi qualificado como "ruim" e caiu da penúltima para a última posição no ranking mineiro de municípios. O índice avalia educação, renda e expectativa de vida.

O aumento da violência, a carência de equipamentos socioculturais e a falta de perspectivas da população na última década revelam que ambos os partidos, agora disputando a Presidência com os candidatos Aécio Neves e Dilma Rousseff, não foram capazes de transformar a vida de Joana e de seus 12 mil conterrâneos.

No primeiro turno, Dilma teve 80,28% dos votos dos eleitos de São João das Missões, contra 14,05% de Aécio Neves e 5,3% de Marina Silva.

Cotidiano missionense

A miséria em São João das Missões não é flagrante. Na praça da igreja da matriz e pelas nas ruas principais há iluminação, calçamento e casas humildes, tudo em boas condições.

Ricardo Senra/BBC
Igreja de São João das Missões (MG) é bem cuidada

Bares e pequenas mercearias que vendem de chinelos a cachaça e rapadura estão por todos os lados. A população se desloca principalmente a pé, de moto ou de bicicleta - transporte publico, além dos raros ônibus intermunicipais, não existe por aqui.

São necessários 10 minutos de carro para entender de verdade a pobreza local. Ela se esconde atrás da mata ressecada da zona rural e da reserva indígena do povo Xakriabá, onde vivem isolados mais de 70% dos 12 mil habitantes de Missões.

De costas para o quintal onde planta remédios ("chá de sete dores e romã"), Joana inicialmente recua quando perguntada sobre as eleições presidenciais.

"Não voto mais", conta, com sorriso ambíguo. "Eu votava para engrandecer os outros, uai. Que nada. Ninguém ganhava (benefícios dos eleitos)".

Pouco depois, ela olha para o teto e relativiza. "Tem políticos que 'faz' bem pro povo. Tem outros que não 'faz'."

Na área urbana, as duas únicas escolas funcionam no mesmo prédio - uma mantida pelo Estado e outra pelo município. Há um só posto de saúde aberto a toda a população, onde trabalham duas médicas cubanas, contratadas pelo governo federal como parte do programa Mais Médicos por falta de disponibilidade de profissionais brasileiros.

Não existem universidades, cinemas, teatros, museus ou qualquer opção cultural diferente de festivais ocasionas de música regional e da romaria anual, que enche a cidade nos meses de junho.

À reportagem da BBC Brasil, Fábio Pereira de Souza, assessor de políticas públicas da prefeitura (e irmão do prefeito), disse "não conseguir entender" o porquê da má avaliação no ranking do IDH.

"O nosso município parece mais elevado do que as cidades vizinhas. Nós recebemos mais recursos. A presença da reserva indígena traz vantagens nesse sentido. A gente ainda não conseguiu descobrir o critério, mas acho que eles não entenderam que a culturalidade dos índios é diferente."

Embora tenha havido progressos entre 2000 e 2010, o município está situado na faixa classificada pela ONU como de "desenvolvimento humano baixo" e a intensidade dos avanços na cidade foi menor que as médias do Estado de Minas Gerais e do país no período, segundo as Nações Unidas.

A taxa de mortalidade infantil em Missões é de 21,2 mortos a cada mil nascidos, contra uma média de 16,7 mortos por mil nascidos no restante do país. Em 2010, apenas 26,96% da população de mais de 18 anos tinha completado o ensino fundamental, contra uma média de 51,43% em Minas.

Além disso, em 2010, 53,37% da população do município era considerada pobre de acordo com os parâmetros da ONU , e outros 33,88% eram extremamente pobres, ou seja tinha uma renda per capita mensal inferior a R$ 70.

Ricardo Senra/BBC
São João das Missões, na caatinga do norte de Minas Gerais, quase fronteira com Bahia: seca e pobreza

Corrupção, armas e suicídios

Além disso, o município sofre com denúncias de corrupção e desvios.

Um ex-prefeito, que governou entre 1997 e 2004 pelo PSDB, foi condenado por desvio de recursos para atenção básica dos povos indígenas e entrou para a lista dos políticos "ficha-suja".

Segundo o jornal Estado de Minas, a atual prefeitura, comandada pelo PT, também é investigada por supostas fraudes em licitações de obras e também na compra de material hospitalar. O prefeito, que não estava na sede da administração municipal durante a visita da reportagem, nega as acusações.

Nas mesinhas de plástico dos botequins, o aumento da violência nos últimos 10 anos é assunto comum.

À reportagem, a dona de um estabelecimento comercial na região central conta ter visto o primeiro cadáver assassinado de sua vida a poucos passos de casa. "Morreu ali, passou um carro e atirou. Falaram que foi acerto de contas por papelote", diz, apontando para a esquina.

Os missionenses contam que, além da chegada recente da cocaína, as armas são problema antigo. Durante décadas, fazendeiros da região locais viveram em conflito com os índios xakriabá.

O objeto da disputa era área de milhares hectares da terra onde vive a população indígena e cabocla. O território só foi demarcado em 1987, logo após uma emboscada que matou o cacique, sua esposa, outro índio e um homem branco.

Dentro da reserva há 32 aldeias, formadas por casas pobres de alvenaria ou pau a pique. Numa das vilas, Embaúba, o índice de suicídios preocupa o cacique Domingos Xakriabá.

"Foram mais de 10", conta. "Durante muito tempo o nosso povo precisou abandonar a tradição para não parecer índio. Nossos parentes saíam disfarçados porque eram perseguidos. A gente está fazendo um trabalho para entender as causas dos suicídios, mas ainda não se sabe."

É nesta aldeia que mora dona Joana, cuja história abriu esta reportagem.

Ao contrário de alguns dos vizinhos, diz ser grata por sua vida e de não ter do que reclamar, por saber que tem "gente em situação pior que a minha".

"Por isso que um presidente bom precisa ajudar. Ajudar o povo, mais ainda esses fracos que não podem (sobreviver sem renda). Eu não quero a coisa só para mim. O tanto que eu desejo para mim eu desejo para qualquer pessoa", diz, com a voz forte, completando que considera sua vida "boa".

"Se Deus ajudar para entrar um (presidente) para melhorar mais... É bom, né?".

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