Violência no Rio

Pós-Jogos, transporte, saúde: os maiores desafios do novo prefeito do Rio

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

  • Felipe Dana/AP

Quem assumir a Prefeitura do Rio de Janeiro no começo de 2017 irá encontrar uma capital de mais de 6 milhões de habitantes recém-saída de um período de dez anos de grandes eventos, entre os Jogos Panamericanos de 2007 e a Olimpíada. Os problemas da cidade se misturam aos da região metropolitana e tornam, para os especialistas ouvidos pelo UOL, necessário repensar o papel da antiga capital do país. Confira a seguir os principais desafios que o(a) vencedor(a) da disputa eleitoral na Cidade Maravilhosa encontrará a partir de janeiro.

O pós-Olimpíada

Rodrigo Ferreira/UOL
Olimpíada encerra ciclo de dez anos de grandes eventos no Rio

As adaptações para o uso completo do Parque Olímpico da Barra da Tijuca, anunciado pela prefeitura como um dos principais legados dos Jogos Olímpicos, devem levar mais de dois anos para ficarem prontas, segundo estimativas da "Folha de S.Paulo". A prefeitura deve gastar cerca de R$ 331 milhões na desmontagem das estruturas que vão desaparecer, assim como na adaptação para os novos usos dos estádios.

A manutenção das arenas consumirá, segundo a estimativa, R$ 39 milhões por ano quando tudo estiver pronto. Já os dois complexos esportivos (Barra e Deodoro) devem gerar uma despesa de R$ 85 milhões por ano quando estiverem em pleno funcionamento.

Os cerca de 3.600 apartamentos da Vila Olímpica, por sua vez, construídos com investimento de R$ 2,9 bilhões das construtoras Odebrecht e Carvalho Hosken, serão repintados e colocados à venda, formando o bairro planejado Ilha Pura.

Pascal Le Segretain/Getty
Vista geral da Vila Olímpica

De acordo com o prefeito Eduardo Paes, os gastos da cidade do Rio exclusivamente com os Jogos Olímpicos, como com arenas esportivas, foi de R$ 732 milhões de 2009 a 2015. A maior parte do orçamento público com o evento, que custou R$ 7 bilhões, partiu, segundo o prefeito, da iniciativa privada. A prefeitura deve repassar ainda entre R$ 100 milhões e R$ 150 milhões para os Jogos Paraolímpicos, realizados entre os dias 7 e 18 de setembro.

O UOL ouviu José Marcelo Zacchi, coordenador-geral da Casa Fluminense, Maurício Macedo, cientista político e professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e Rafael dos Santos, historiador especialista em administração pública. Todos são unânimes em dizer que um dos principais desafios da próxima administração do Rio de Janeiro será definir qual o papel do Rio nesse cenário e como a cidade irá lidar com o fim do ciclo de grandes eventos recebidos nos últimos dez anos.

"É preciso pensar o Rio para além dos grandes eventos, pensar a cidade para as próximas décadas", defende José Marcelo Zacchi, coordenador-geral da Casa Fluminense, entidade que elaborou, com o apoio de cerca de 50 organizações da sociedade civil, o projeto Agenda Rio 2017, conjunto de propostas para o futuro da cidade. Para Zacchi, é essencial enxergar para além da capital e incluir nos planos e projetos do município também as cerca de 6 milhões de pessoas que vivem na Baixada Fluminense e na região metropolitana. "Temos que enxergar o Rio como uma metrópole de 12 milhões de pessoas, uma das maiores cidades do mundo, e pensar a cidade a partir deste ponto de vista, que não pode ser só local", afirma.

Além disso, diz o cientista político e professor da Uerj Maurício Macedo, caberá à próxima administração definir como os moradores e a cidade irão se relacionar com os equipamentos olímpicos. "Há uma interrogação de como a cidade do Rio de Janeiro vai dialogar com esses novos espaços olímpicos. Esses apartamentos [da vila dos atletas] vão ser vendidos rapidamente? O comércio em volta vai ser afetado de que maneira?", questiona.

Especialista em administração pública, o historiador Rafael dos Santos lembra que somente agora será definido de fato qual foi o legado dos Jogos para a cidade. "A gente perdeu uma grande oportunidade de usar esses grandes eventos de maneira inclusiva. Esses grandes eventos não serviram para promover uma inclusão social, melhorar a vida de quem mora na periferia e nas áreas mais desfavorecidas da cidade", diz.

Transporte

Yasuyoshi Chiba/AFP
Por ano, os motoristas do Rio gastam 165 horas em congestionamentos

Nos últimos anos, o Rio ganhou três corredores expressos de ônibus, os chamados BRTs, um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), ligando o centro à região portuária, e cinco novas estações de metrô entre Ipanema, na zona sul, e o começo da Barra da Tijuca, na zona oeste. A mobilidade, no entanto, continua como uma das principais questões da cidade.

Apesar das readequações feitas pela prefeitura, o sistema de transporte segue historicamente concentrado na zona sul e no centro, enquanto a maior parte da população vive nas zonas norte e oeste da cidade, diz o engenheiro de transportes Alexandre Rojas. O transporte público entre essas áreas e o centro, afirma, costuma levar horas. Ele lembra também a necessidade de realocar a rodoviária, atualmente na região portuária. "A rodoviária precisa ser repensada e desmembrada. Ali, onde está, torna-se mais um fator de complicação do trânsito", afirma.

Júlio César Guimarães/UOL
No centro do Rio, motoristas ainda enfrentam trânsito

Além disso, no começo de 2016, um levantamento da empresa TomTom colocou a capital fluminense como a quarta cidade onde os motoristas perdem mais tempo em vias congestionadas no mundo, atrás apenas de Cidade do México, Bangcoc e Istambul. Por ano, os motoristas do Rio gastam 165 horas em congestionamentos, o que equivale a ficar mais de seis dias inteiros no trânsito.

Zacchi afirma que diariamente milhares de pessoas se deslocam da Baixada Fluminense e da região metropolitana para trabalhar na capital, o que torna importante pensar a mobilidade para além das fronteiras da cidade. "Dois milhões de pessoas deixam seus municípios de residência diariamente para lazer, estudo e trabalho nas áreas privilegiadas da capital. É o equivalente a um Réveillon por dia", diz.

Segurança pública

Felipe Dana/AP
Protesto contra os mortos pela violência na cidade realizado em Copacabana

Apesar de a segurança pública ser uma função do governo do Estado, não é possível desassociá-la dos desafios que serão encarados pela nova administração. Depois de um período de queda, os índices de criminalidade na cidade voltaram a crescer, colocando o tema entre as principais preocupações do carioca.

Nos primeiros seis meses de 2016, foram registrados 2.459 homicídios na capital, contra 2.105 no mesmo período em 2015, um aumento de cerca de 17,5%. A quantidade de roubos de rua --a pedestres, em ônibus e de celular-- cresceu 34,1% no primeiro semestre de 2016, em relação ao mesmo período do ano passado. De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, criado pela Anistia Internacional e que cruza informações sobre tiroteios e/ou disparos de arma de fogo na capital fluminense e na região metropolitana recebidas por moradores com dados das forças policiais, apenas em julho ocorreram, em média, 25 tiroteios por dia na cidade.

Domingos Peixoto/Agência O Globo
Jovens são detidos após arrastão em Copacabana, na zona sul carioca

Para Macedo, a prefeitura pode exercer um papel importante, auxiliando o Estado ao trabalhar tanto com a melhoria da iluminação pública quanto distribuindo melhor os guardas municipais pelos espaços públicos. O papel da guarda, por sinal, será outra questão para a futura administração, diz Macedo.

O armamento da tropa, atualmente com 7.500 agentes, divide especialistas e é um pedido antigo da corporação. Uma lei federal permite que as câmaras municipais deliberem sobre a autodefesa de seus agentes e autoriza o uso de armas em cidades com mais de 50 mil habitantes. Na vizinha Niterói, os guardas municipais já foram autorizados a andar armados.

Urbanização das favelas

Felipe Dana/AP
Vista do complexo de favelas do Alemão, um dos maiores da cidade

O Rio possui 763 favelas espalhadas pelas mais diversas regiões da cidade, em que vivem ao menos 2 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A prefeitura prometeu, ainda em 2010, urbanizar todas as favelas até 2020, com base no ambicioso programa Morar Carioca, orçado em R$ 8,5 bilhões. Até o momento, três dos 40 projetos originais foram concluídos.

Para o urbanista e professor da UFRJ Orlando Santos, a proposta foi "jogada para o alto". "A promessa era urbanizar todas as favelas até 2020. Estamos em 2016 e o quanto caminhamos?", questiona.

Ele lembra que nos últimos anos a cidade teve sua expansão direcionada cada vez mais para a zona oeste, em detrimento de áreas mais povoadas, como a zona norte e o centro. "Foi incentivada uma tendência à 'periferização', construção de Minha Casa, Minha Vida na periferia da zona oeste... Ao mesmo tempo, houve uma política de elitização das áreas centrais, como a Barra da Tijuca, a zona portuária e a zona sul, reproduzindo na cidade um modelo de habitação desagregador", diz. "A próxima administração vai se deparar com uma cidade mais socioespacialmente desigual. Vai ser um desafio se o prefeito quiser reverter", afirma.

Yasuyoshi Chiba/AFP
Luzes iluminam a favela da Rocinha

O urbanista critica a falta de debate em torno do que seriam as prioridades para a cidade e toma as obras construídas como legado da Olimpíada como exemplo: "Se aciona a palavra legado para legitimar as intervenções que estão sendo realizadas, como se não fosse necessário discutir. Essas são as prioridades? É disso que a cidade precisa? O projeto olímpico foi um projeto excludente, se promoveram remoções, concentraram investimentos em prol do mercado imobiliário. É claro que há benefícios, mas, no geral, quando se olha o projeto de cidade, encontramos um lugar muito mais desigual".

De acordo com a prefeitura, entre 2010 e 2016, o Morar Carioca beneficiou 500 mil moradores de 122 mil domicílios em 226 comunidades e loteamentos de toda a cidade, com um investimento de R$ 2,72 bilhões em obras já concluídas e em andamento. A Secretaria Municipal de Habitação, no entanto, não soube precisar quantos dos 40 escritórios originalmente contratados foram acionados nem qual será o cronograma do programa até 2020.

Saúde

Fabiano Rocha / Extra / Agência O Globo
Pacientes fazem fila em frente ao Hospital Albert Schweitzer, municipalizado em janeiro

A grave crise financeira enfrentada pelo governo do Estado, que decretou calamidade pública financeira e tem parcelado os salários de servidores por falta de dinheiro em caixa, acaba prejudicando também o sistema de saúde da capital fluminense ao levar para a rede municipal pacientes que seriam atendidos em unidades do Estado. "Embora as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) sejam estaduais, o mau funcionamento delas impacta na rede municipal", diz Santos.

Segundo ele, ainda não foi mensurado o impacto nas contas da municipalização dos hospitais Albert Schweitzer, em Realengo, e Rocha Faria, em Campo Grande, ambos na zona oeste, realizada no começo do ano. "Precisamos ver como esse novo gasto irá impactar nas contas do município no longo prazo", afirma.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, nos primeiros seis meses a municipalização dos dois hospitais teve um custo de R$ 210 milhões, e a estimativa de custo anual, com base em dados do governo do Estado, é de R$ 500 milhões. 

Há ainda a questão das OSs (Organizações Sociais em Unidades). Das dez OSs que administram 108 das 248 unidades de saúde da Prefeitura do Rio, oito são investigadas em procedimentos no Ministério Público estadual e em ações no Tribunal de Justiça do Rio por suspeitas de irregularidades. "O próximo prefeito terá de avaliar se é válido manter esses contratos ou não", diz.

A Secretaria de Saúde informou que os contratos com as dez organizações sociais foram mantidos, uma vez que "todas as recomendações do Ministério Público para melhoria dos contratos são acatadas pela secretaria" e "não há sentença ou julgamento desfavorável às organizações sociais com contratos em vigor com o município ou que determinem o cancelamento desses contratos".

Educação

Fábio Teixeira/UOL
Crianças brincam em viela no Complexo do Alemão

Para Priscila Cruz, presidente-executiva da ONG Todos pela Educação, o Rio, assim como outras capitais, precisa avançar na universalização da educação infantil --por lei, 100% das crianças de quatro e cinco anos precisam estar na escola--, além de garantir a alfabetização até os oito anos de idade.

"O Rio tem um histórico de trabalho com as crianças, mas é preciso acelerar essas mudanças", afirma. "Se uma criança não chega aos oito anos alfabetizada de fato, dificilmente ela conseguirá superar essa diferença mais à frente."

De acordo com dados do MEC (Ministério de Educação), 20,6% dos alunos que cursam o terceiro ano no município, entre oito e nove anos de idade, têm "nível 1" de proficiência em leitura, considerado insuficiente, o que significa que são capazes de ler palavras, mas não de compreender frases e textos. Ainda segundo o MEC, 33% das crianças nessa idade na cidade não têm níveis adequados de proficiência em escrita e 57% não têm níveis adequados de proficiência em matemática. O IBGE, por sua vez, aponta que 10,7% das crianças entre quatro e cinco anos no Rio e na região metropolitana em 2014, último dado disponível, estavam fora da escola.

A Secretaria Municipal de Educação informou que, desde 2009, implantou 238 Espaços de Desenvolvimento Infantil e que devem ser abertos outros 38 espaços até o final do ano, a fim de chegar a 60 mil novas vagas para a educação infantil até o final de 2016 --atualmente, segundo a secretaria, 137 mil alunos já são atendidos na educação infantil.

De acordo com a prefeitura, desde 2010 o município realiza uma avaliação externa em português e matemática para medir os níveis de alfabetização ao fim do primeiro ano do ensino fundamental. "Pelos resultados de 2014, mais de 90% dos alunos estavam alfabetizados ao fim daquele ano", afirma a secretaria, em nota. "A Secretaria de Educação ressalta, também, que já atingiu a meta de redução do analfabetismo funcional de alunos do quarto ao sexto ano para menos de 5%, prevista para 2016. A taxa caiu de 13,6% em 2009 para 2,4% ao final de 2015. No mesmo período, 47.900 alunos foram realfabetizados."

Lazer

Fábio Teixeira/UOL
Menino pula de barco na praia de Ramos, na zona norte, banhada pela Baía da Guanabara

Boa parte dos equipamentos culturais do Rio estão concentrados no centro e na zona sul da cidade, diz Macedo. Algumas das marcas da administração atual são o Parque Madureira, inaugurado pelo prefeito Eduardo Paes (PMDB) no bairro de Madureira, na zona norte, e a revitalização da praça Mauá, na zona portuária, mas Macedo diz acreditar que a distribuição das áreas de lazer pela cidade ainda precisa ser repensada pela nova administração.

"A maior parte dos moradores da cidade vive na zona oeste e na zona norte, e essas são áreas em que há muito pouco investimento público desse tipo de estrutura de lazer. Tem muitas áreas da cidade que continuam à míngua e isso vai ser colocado como questão, já que houve, nos últimos anos, a construção e a revitalização de várias áreas de lazer no centro e na zona sul da cidade, como a Praça Mauá, o Museu do Amanhã, o futuro Museu da Imagem e do Som em Copacabana. Mas e Bangu, e Campo Grande, e Realengo? As áreas mais pobres e mais violentas da cidade, como ficam?", questiona.

O cientista político diz que essa questão acaba associada ao transporte e à circulação dos moradores pela cidade, uma vez que os percursos são longos e caros. "É muito caro circular pelo Rio de Janeiro, é muito longo. Como faz uma família da zona oeste que quer passar um domingo num parque, numa atividade gratuita? Se não tiver um equipamento no bairro, o custo desse deslocamento acaba sendo muitas vezes proibitivo."

Veja também

UOL Cursos Online

Todos os cursos